Ninguém se sente confortável ao saber que cada passo que dá está sendo monitorado, como se a privacidade fosse algo inalcançável. Esse sentimento de invasão se agrava quando ignora completamente os desafios da vida real da maioria dos brasileiros e acaba sufocando justamente aqueles que lutam diariamente para garantir sua sobrevivência.
Embora a Receita Federal afirme que não pretende taxar diretamente o Pix, mas apenas monitorar as movimentações financeiras de pessoas físicas e jurídicas, suas explicações não conseguem amenizar a sensação de desconexão com a realidade. A cada pronunciamento, fica mais evidente o abismo entre as intenções da Receita e a vida prática do cidadão comum, que depende de redes informais e soluções criativas (explico em detalhes ao longo do artigo) para sobreviver em um cenário econômico desafiador.
Para a maioria dos brasileiros, o Pix não é apenas uma ferramenta de pagamento. Ele é uma peça essencial em um quebra-cabeça de sobrevivência. Em muitos casos, os valores que aparecem como movimentação financeira em uma conta bancária não refletem a realidade dos ganhos daquela pessoa. É comum, por exemplo, que alguém intermedie negociações ou ajude terceiros, recebendo e transferindo valores que não são, de fato, lucro ou receita própria. No final, o que sobra dessa movimentação é apenas uma pequena margem de ganho, enquanto os números totais podem ser mal interpretados como grandes rendimentos.
A Receita, no entanto, pode interpretar essa movimentação como lucro ou receita tributável. Não porque haja má-fé, mas porque as regras são pensadas para grandes movimentações financeiras ou para atividades formalizadas, e não para as complexas redes informais em que vive a maior parte da população.
Essa desconexão também afeta as pequenas empresas e microempreendedores. Muitos negócios de bairro dependem do Pix para vendas rápidas e para girar o caixa. Quase sempre, esses pequenos empreendedores misturam as contas pessoais e as do pequeno negócio, não por escolha, mas porque a burocracia e os custos de manter contas separadas ainda são altos, porque manter mais de uma conta torna o controle mais complicado, difícil e consome mais tempo. O monitoramento excessivo e a possibilidade de questionamentos sobre as movimentações financeiras dessa dinâmica empreendedora informal, só servem para sufocar ainda mais quem já enfrenta as mais diversas e duras dificuldades para manter um micro ou pequeno negócio no Brasil.
Além disso, a Receita Federal insiste em aplicar o mesmo padrão de monitoramento e fiscalização para pequenas empresas e grandes corporações. Essa lógica ignora que, enquanto uma megaempresa possui estruturas robustas de compliance, gestão financeira e planejamento tributário, um pequeno comerciante mal consegue separar o dinheiro da empresa das contas de casa. O resultado é um tratamento que coloca todos na mesma lente e limites para monitoramento, atrapalhando a vida do pequeno.
Um dos principais problemas na atual regra é o limite baixo para o monitoramento das movimentações financeiras. Para muitas pessoas físicas, valores que parecem altos em um extrato bancário são, na realidade, fruto de um fluxo de empréstimos, pagamentos e reembolsos de redes informais da vida cotidiana dessas pessoas. A atual configuração da Receita ignora que movimentar maiores somas de dinheiro não significa, necessariamente, enriquecimento.
Os pequenos negócios (principal motor da economia brasileira) e os trabalhadores autônomos, especialmente, são os mais prejudicados, com suas margens de lucro cada vez mais apertadas e custos operacionais cada vez maiores. O limite para o monitoramento deveria ser significativamente mais alto para refletir a realidade de quem vive de pequenos ganhos diários e, muitas vezes, nem atinge o piso tributável anual. Além disso, deveria haver um tratamento diferenciado para pequenas empresas, com regras mais simples e justas, que levem em conta suas limitações. As pequenas empresas não precisam de mais monitoramento, precisam de mais e melhores linhas de financiamento, especialmente para capital de giro.
A Receita Federal precisa urgentemente rever sua abordagem e se conectar com a vida real da maioria dos brasileiros. Não se trata de facilitar a sonegação fiscal, mas de reconhecer que as regras atuais penalizam quem já enfrenta enormes desafios para sobreviver. O monitoramento excessivo de transações pelo Pix pode parecer uma medida eficiente para aumentar a arrecadação, mas, na prática, pode sufocar ainda mais os pequenos negócios e trabalhadores informais que sustentam incansavelmente a base da economia brasileira.
Em um país onde a criatividade e a resiliência são virtudes indispensáveis para a sobrevivência, o governo deveria atuar como aliado, buscando incentivar e fortalecer quem luta para prosperar em meio aos desafios diários, e não criar barreiras que tornem essa jornada ainda mais árdua. Afinal, enquanto a Receita Federal interpreta números em relatórios e utiliza ferramentas de inteligência artificial para monitorar transações, milhões de brasileiros estão nas ruas, nas feiras, nas lojas de esquina, usando sua coragem e engenhosidade para sustentar suas famílias com dignidade. É no suor dessas pessoas que pulsa o verdadeiro combustível da economia do Brasil, uma economia que precisa de apoio, não de asfixia.
Bruno Bezerra é empreendedor e atual presidente da CDL Santa Cruz do Capibaribe-PE